Homilia de D. Carlos Azevedo na vigília de preparação para a beatificação da Madre Maria Clara
Sinto-me muito feliz por presidir a esta vigília, que abre a preparação próxima para a festa da beatificação de Maria Clara do Menino Jesus. Pessoalmente muito devo às Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição. Fomos companheiros em muitas ações pastorais, ainda seminarista e no exercício do ministério presbiteral na diocese do Porto e, no decorrer de muitas atividades, sempre acolhido com hospitalidade fraterna nas suas casas espalhadas pelo país. Graças à fecundidade do carisma da Mãe Maria Clara muito beneficiei espiritualmente da amizade de irmãs franciscanas hospitaleiras. Caríssimas irmãs: este reconhecimento sirva de perdão se nem sempre pude corresponder ao que recebi. Preparamo-nos para reconhecer publicamente uma mulher, uma religiosa na qual transparece a ternura do Pai, onde se espelha a misericórdia revelada por Jesus, em quem o ímpeto do Espírito encontrou disponibilidade. A ternura de Deus encontra, na história, imagens vivas da sua misericórdia, da sua compaixão. Saber ser próximo é usar de misericórdia, não apenas falar de misericórdia, mas fazer, usar, praticar, ligar feridas, deitar azeite e vinho, colocar na própria montada, levar para a estalagem, cuidar, gastar e partilhar bens. Foi a cuidar dos atingidos pela epidemia que atingia Lisboa que o pai da futura Irmã Maria Clara sairia contagiado e viria a dar a vida. Com este exemplo paterno aliviar os sofrimentos dos pobres foi escola de vida. De fato, os discursos sobre a proximidade sem gestos de ternura, sem atos de misericórdia, afastam da verdade de Deus. Só vidas carregadas de atitudes concretas como a da Mãe Maria Clara transpiram a santidade, são transparência da Trindade santíssima. A procura da santidade corre o risco de cair em modos ilusórios e evasivos, de descambar para a satisfação de demandas emocionais, de acumular conflitos interiores, mantendo uma superficialidade de letargia mole, incapaz de dar hoje razões da esperança. A santidade patente A santidade não se confunde com a indiferença perante a realidade, com a insensibilidade perante os dramas humanos, não passa ao lado dos problemas para andar de bem com todos. A santidade cristã, bem visível no itinerário desta religiosa, é incompatível com comportamentos inócuos e contraproducentes, com subterfúgios alienantes. Olhar para a vida da franciscana Irmã Maria Clara move-nos para acolher o amor do Pai, transformando efetivamente as relações sociais. Deus não precisa reter consagrados para si. Se os retira é para atirá-los. Se os chama é para enviá-los. Os verdadeiros santos são sempre sensíveis à história, solidários a partir de uma experiência profunda de Deus. O dom recebido de Deus difunde-se na experiência quotidiana junto dos irmãos. O realismo dos santos é surpreendente. Vivem com entusiasmo e disponibilidade, vivem plenamente, unem liberdade e responsabilidade para atuar nos destinos da história, sem pactuarem com fatalismos. No mundo hodierno de gritantes injustiças, de egoísmos acumulados, de visões individualistas ou clubistas, sem largueza de horizontes; num tempo marcado pelo imediatismo, sem antevisão de futuro, ser santo traduz-se em empenho na promoção da vida dos mais débeis, na superação das desigualdades, na procura de comunhão sem exclusão de ninguém, na preocupação com o cosmos e a harmonia do universo. Todos somos caríssimos irmãos e irmãs, chamados à santidade no nosso lugar de vida. Os frutos da graça que o Espírito Santo produz em nós podem ser vividos de maneira muito diferente por cada um e cada uma. Importa estar atentos aos apelos de Deus, como Maria Clara, a Libânia da Quinta do Bosque, na Amadora. Após infância feliz entre os seus pais e sete irmãos, no seio de uma família profundamente cristã, é atingida pela morte dos pais e entra em contacto com várias comunidades religiosas, nas quais cresce, seja na formação, seja na abertura ao mistério amoroso de Deus. Vibra, no seu coração sensível e despojado, o seguimento livre do Senhor Jesus ao jeito de S. Francisco, na pobreza e na dedicação aos pobres. A situação de carência dos meados do século XIX, em Portugal, impele o P. Raimundo Beirão a sonhar uma congregação dedicada a curar as feridas da sociedade, como o samaritano do evangelho. Deixe-me citar a carta da Irmã Maria da Conceição Galvão Ribeiro superiora Geral das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras: “Convivendo com uma conjuntura político-social adversa, [a Irmã Maria Clara] não esquece as obras do benfazer, nascidas do seu coração, e prossegue lutando, para que a ternura e a misericórdia de Deus continuem a ser levadas a todos os necessitados. Por isso as irmãs vão sendo enviadas a minorar carências, suavizar dores, consolar tristezas, povoar solidões: são os pobres, os aflitos, as famílias em necessidade, os doentes, os desamparados, os idosos, as crianças, os órfãos, todos… a quem chama a sua gente. De todos se faz mãe que abraça e aconchega, orienta e apóia”. A Irmã Maria Clara fez sua a dor dos pobres, fez seu o abandono dos postos de lado, hospedou o desalento. É um grande modelo para uma corajosa intervenção social dos cristãos. A sua ternura, bebida na fonte amorosa do Pai nos contagie. A sua resistente e firme misericórdia, animada pelo viver em Cristo, nos mova para criarmos modos novos de servir os mais desvalidos. A sua decisão por Deus, inspirada pelo Espírito Santo, nos faça potenciadores de esperança, nesta hora. Sejamos santos, aqui, onde o Senhor nos plantou. Sejamos santos levando a sério a forma de vida à qual fomos chamados, assumindo com liberdade e entusiasmo o que somos e aquilo que devemos realizar operar na comunidade a que pertencemos. Seja efetivo o nosso compromisso, seja dinâmico, concreto, como a samaritana Irmã Maria Clara do Menino Jesus. D. Carlos Azevedo, Bispo Auxiliar de Lisboa |