quarta-feira, 20 de junho de 2012

Beata Hosana de Mântua, religiosa e mística

            
 
            Quando estudamos a história interna dos Estados italianos no final da Idade Média, não podemos deixar de observar o papel importante desem­penhado por certas mulheres santas que viviam em seu meio, cujos conse­lhos e orações eram procurados pelos governantes e pelo povo e que foram consideradas, ainda em vida, como protetoras da comunidade e como me­diadoras entre Deus e os homens. Uma destas mulheres foi a Beata Hosana.
             Nascida em Mântua, a 17 de janeiro de 1449, era filha de Nicolau Andreasi e de Luísa Gonzaga, cujo nome nos mostra que ela estava ligada, por algum laço de parentesco aos duques reinantes. Hosana era a filha mais velha de uma família numerosa, algiros membros da qual deveriam ser objeto quase constante de seus cuidados durante toda a sua vida.
             Ela contava cinco anos, quando teve sua primeira experiência religiosa. Estava, certo dia, caminhando à beira do rio Pó em Carbonarola, quando ouviu uma voz que lhe dizia, suave e distintamente: "Menina, a vida e a morte con­sistem em amar a Deus". Ela caiu imediatamente em êxtase e foi condu­zida por um anjo ao Paraíso. Ali o anjo lhe mostrou todas as criaturas que louvavam a Deus, cada uma a seu modo, e lhe explicou que este louvor, que será nossa principal função na eternidade, deve ser nossa preo­cupação e nossa felicidade ainda nesta vida. Era uma revelação por demais maravilhosa para ser transmitida a uma criança pequena; mas Hosana res­pondeu com a entrega total de seu ser a Deus.
              A partir dessa época, ela começou a passar longas horas em oração e penitência. Caía frequentemente em êxtase, para grande preocupação de seus pais, que inicialmente atribuíram seus transes à epilepsia. Desejosa de aprender mais coisas a respeito da religião, pediu que lhe ensinassem a ler, mas seu pai lho recusou, sob o pretexto de que esta aprendizagem era perigosa para as mulheres.
             Seu biógrafo atribui o fato de ela haver aprendido a escrever e a ler à intervenção direta de Nossa Senhora, mas, em vista da facilidade com que uma menina inteligente pode assimilar as lições ministradas a seus irmãos, deve-se preferir uma explicação puramen­te natural. Quando tinha quatorze anos, ela pediu permissão para ingressar na Ordem Terceira de S. Domingos, mas encontrou novamente resistência, porque seu pai queria que ela se casasse. Contudo, permitiu-lhe, um pouco mais tarde, que tomasse temporariamente o hábito dominicano, em agrade­cimento por se haver recuperado de uma doença grave; e quando terminou o período prefixado e ela anunciou que se havia comprometido por toda a vida, o pai, embora irritado, não insistiu.
         Por estranho que nos pareça, ela não professou como terceira durante trinta e sete anos, continuando na qualidade de noviça e sempre ocupando o último lugar nas reuniões da Ordem Terceira. A razão para este adia­mento é obscura: provavelmente tinha consciência de que as obrigações decorrentes da profissão religiosa eram de algum modo incompatíveis com os deveres que Deus lhe exigia no mundo. Seus pais morreram quando ela era ainda jovem, e ela continuou a residir no palácio Andreasi, dedi­cando-se a seus irmãos e às suas famílias, jamais procurando fazer sua própria vontade, mas servindo a todos como se fosse a mais humilde de suas empregadas. Praticava suas austeridades e devoções o mais privada­mente possível.
         Quando tinha dezoito anos de idade, Hosana recebeu um outro favor extraordinário do alto. Em uma visão, Nossa Senhora desposou-a com Nosso Senhor, que lhe colocou um anel no dedo: ela podia senti-lo sem­pre, embora fosse invisível para os outros. Parece que, por esta época, ela sofrsu alguma perseguição. Em suas cartas, é reticente e tende a recrimi­nar-se a si mesma, mas parece que foi julgada injustamente por suas cole­gas terceiras, que punham em dúvida sua sinceridade e a autenticidade das manifestações espirituais que ela nem sempre podia esconder, apesar de seus esforços. Chegaram ao ponto de denunciá-la ao duque, e mesmo de ameaçar de expulsá-la da Ordem. Isto aconteceu um pouco antes que a agitação desaparecesse completamente.  Entre 1476 e 1481, ela teve uma série de experiências nas quais lhe foi dada a graça de participar fisica­mente nos mistérios da Paixão, primeiramente com a coroa de espinhos, depois com a chaga do lado, e finalmente com as chagas das mãos e dos pés. Essas chagas não eram visíveis, maz faziam-na sofrer intensamente.
              A grande estima que o duque Frederico de Mãntua consagrava à Bea­ta Hosana se manifestou de maneira notável em 1478. Na véspera de partir para uma campanha na Toscana, ele lhe enviou mensageiros, pedindo-lhe que olhasse não somente pela duquesa e seus cinco filhos, mas, pratica­mente, que o substituísse em sua ausência. Hosana inicialmente fez objeções, alegando sua falta de experiência e sua juventude, porque ainda não tinha trinta anos.
             O duque, contudo, insistiu, e ela concordou, com a sim­plicidade e com a confiança em Deus que a caracterizaram durante toda a sua vida. Embora nunca deixasse de morar em sua própria casa, agora passava grande parte de seu tempo no palácio, tratando, com tanta sabe­doria, dos problemas que lhe eram apresentados, que Frederico continuou a consultá-la, mesmo depois de seu retorno. Com efeito, havendo ela pro­longado indevidamente — na opinião dele — uma visita que fazia a Milão por ordem de seus superiores dominicanos, ele escreveu-lhe uma carta, pedindo que voltasse.
             Toda a família do duque a tinha como sua amiga mais querida, e, quando Francisco II sucedeu ao pai, tanto ele como a noiva, Isabella d'Este, continuaram a tradição. Em cartas que se conser­vam até hoje, vemo-la confiar na sua amizade com eles, para interceder por todos os tipos de sofredores, ora reclamando justiça para alguma vítima infeliz, ora pedindo clemência para um preso, até mesmo com o risco de parecer importuna, como ela mesma confessava ocasionalmente.
              Em 1501, afinal, ela fez sua profissão definitiva como terceira, e durante os quatro anos restantes de sua vida, quando sua saúde entrou em declí­nio, ela parecia já não pertencer a este mundo. Morreu em 20 de junho-de 1505, aos cinquenta e seis anos de idade. O duque e Isabella d'Este que a assistiram nos últimos momentos, lhe prepararam funerais e isentaram at família Andreasi de todos os impostos por um período de vinte anos.
         Não será despropositado citar aqui, como preito de honra à memória daquele que R. W. Chambers nos apresenta como "o querido e santo sá­bio. .. Edmund Gardner", uma passagem de um de seus ensaios, em edição do autor, com o título de A Mystic of the Renaissance: Osanna Andreasi of Mantua. Falando da visão que ela tivera na infância, explica o profes­sor Gardner, utilizando as próprias palavras de Hosana, que ela "tinha muito medo por causa da visão que recebera, pois tinha consciência de não amar a Deus como convinha", e que suas aspirações ao estado de per­feição assumiam uma forma articulada na oração em que pedia que Deus a guiasse no caminho da perfeição.
         Esta oração e outros escritos e cartas foram conservados por um ami­go monge, cujas relações de amizade com Hosana nos fazem lembrar muito aquelas do dominicano Pedro de Dácia, mais de três séculos antes, com a estigmatizada Cristina de Stommeln. O professor Gardner se refere a este traço curiosamente interessante de desenvolvimento espiritual de Ho­sana, na passagem seguinte:
         Um elemento peculiar da vida mística de Hosana é o papel que aí desempenhaos laços intensos e puramente espirituais de amor que a ligavam a um homem dez anos mais moço do que ela, Girolamo da Monte Oliveto. Ele nos conta como, jovem ainda de quinze anos, ingres­sou, a caminho de uma aula, numa igreja, onde a viu arrebatada em contemplação, e como, depois disto, sua imagem lhe ficou para sempre gravada no coração. Tão tocado se sentiu, que abandonou o mundo, tomou o hábito olivetano, e, depois de muito lhe pedir, convenceu-a a aceitá-lo como filho espiritual. Os "colóquios espirituais", que ele publi­cou depois que ela morreu, são registros das conversas que os dois mantinham falando sinceramente um para o outro, "tendo apenas Deus entre nós", diz-nos ele. "Ó bondade divina", exclama ele em certa pas­sagem, "nossos corações estavam ligados um ao outro por uma única vontade em sua presença, e tão grande era o amor congénito entre nós dois, que não posso falar dele, sem que as lágrimas me venham aos olhos. A virgem amava seu querido filho em Cristo como sua própria alma, e ele amava sua única mãe mais do que a própria alma. Ó gran­de caridade de Deus, certamente implantada em nossos corações antes de ter havido qualquer conversa espiritual entre nós, ou antes de nos conhecermos reciprocamente!" Em sua visão da união divina ela via a alma dele unida à sua na presença de Deus, e as cartas que ela lhe dirigia quando as obrigações da Ordem o levavam para longe de Mân-tua, têm a forma de cartas de amor espiritualizado. "Recebi tua doce e amável carta, e não consigo exprimir com palavras o quanto ela me deliciou e quão grande consolação ela me trouxe..." "Minha alma se
alegra com cada consolação que experimentas, como se fôssemos, e de fato somos, uma só alma e um só coração, graças ao vínculo e à ação da caridade do doce Jesus".
Ou, também, quando ela ouve dizer que seu caro amante in Cristo voltou para Mântua: "Eu te deixo a imaginar como, ao ouvir a notícia, fiquei quase fora de mim por causa de minha grande alegria e meu contentamento. Meu padre e meu filho único, concebido na grande fon­te da Divina Bondade, quem te dera visses tua indigna mãe mudando de cor: onde é possível encontrar tanto amor e tanto afeto? Eu res­pondo que ele só se encontra no lado sagrado de nosso Salvador. E este amor espiritual tornou-se tão forte, que, acredito eu com a ajuda divina, nem os anjos, nem os arcanjos, nem os demónios, nem qual­quer criatura poderão arrancá-lo do coração; mas, com a graça de Deus, ele chegará à perfeição, em nossa pátria bendita e eterna".
            Quanto às relações de Hosana com o mundo exterior de sua época, em que reinava uma sociedade em sua maior parte corrompida e impreg­nada do semipaganismo do Renascimento, opina o professor Gardner que seu pensamento no último período de sua vida foi marcado profundamente pelas ideias de Savonarola. É verdade que o nome do grande reformador não ocorre jamais nas cartas ou conversas de Hosana, mas, "estou con­vencido", afirma Gardner, "de que isto se deve ao fato de ter sido elimi­nado deliberadamente pelos seus dois biógrafos contemporâneos".
           Conta-se que ela lia demoradamente o Triunfo da Cruz (a obra mais importante de Savonaroia) em suas vigílias noturnas. O fato de ela ter tido visões sobre os horrores reservados à Itália e de ter rezado pedindo que os raios da ira divina não caíssem sobre o país, estava inteiramente dentro do seu espírito. "Vemo-la predizer por diversas vezes", diz o professor Garclner, "os flagelos que se abateriam, sobre a Itália por causa dos peca­dos de seu povo, se este não se arrependesse; acompanhar com apreensão e angústia a vida do papa, de modo mais particular no início do séc. XVI, e sentir cada vez mais a espantosa corrupção da Igreja. Girólamo nos di2 que 'ela receava muito pela sorte da Igreja', e é claro que razões de ordem prudencial o levaram a registrar apenas coisas mais seguras que ela dizia a respeito desses assuntos". Por outro lado, porém, embora acreditasse na condenação de um grande número de almas, Hosana via sempre os indi­víduos como salvos, e muitas vezes os via passarem diretamente deste mundo para o Paraíso.