Este santo tem o nome estreitamente ligado à nossa aventura marítima, pela devoção que lhe tinham os marinheiros que das praias lusitanas se faziam ao mar imenso, em demanda das terras da Índia ou de Santa Cruz. Quando a tormenta uivava, vergando as enxárcias da nau gemente, a tripulação invocava o seu patrono, aclamando:Sant’Elmo! Sant’Elmo! (Primitivamente em italiano: Sant’Ermo = Santo Erasmo). Daí o chamar-se ainda hoje fogo de Sant’Elmo, ou simplesmente Santelmo, à chama azulada que, ao estar iminente a tormenta, fosforeia na extremidade dos mastros ou das vergas das embarcações. É esta a origem de se chamar popularmente ao nosso bem-aventurado – Corpo Santo, porque ao ver a lucilação eléctrica, a marinhagem, na sua simplicidade, julgava que era o próprio santo que vinha socorrê-la, e chamava alvoroçada de esperança: – Corpo Santo! Corpo Santo! .
A cinco ou seis léguas de Palência, em Frómista, nasceu S. Pedro González, aí pelos fins do século XII. Viveu aproximadamente de 1190 a 1246. Muito novo, recebeu as honras de cónego e pouco depois de deão, com elogiosa carta do Santo Padre. Estas distinções em anos tão verdes constituíam grave perigo, que o investido nelas não soube vencer. Subiram-lhe ao cérebro os fumos da vanglória e comprazia-se em pompear galas e esplendores. Mas Deus não queria que a sua bela alma se perdesse na fatuidade e no orgulho.
Um dia – era dia de Natal - saíra Pedro González a estadear o luzimento da sua posição, montado em garboso palafrém, percorrendo ruas e praças, seguido de espaventosa comitiva, galhardeando a riqueza dos trajes e atraindo os olhares de não disfarçada admiração. De súbito porém, o corcel que montava assustou-se, e dando um sacão, cuspiu da sela o vistoso cavaleiro que foi cair numa cova de lodo. A multidão é irrefletida e volúvel. Vendo o jovem deão sair do fosso no estado que bem pode imaginar-se, os mesmos que o aplaudiam, romperam na mais estrondosa gargalhada. Fácil de compreender é quanto ficou corrida e confusa a vítima da impiedosa troça. Tão vivo foi o seu despeito, que exclamou – ao que se diz – em mal abafada cólera: – O mundo moteja e ri-se de mim, exatamente quando eu tudo fazia por lhe com prazer: pois bem, agora quero eu motejar e rir do mundo, voltando-lhe costas e fugindo para onde sei que não me atingirão os seus sarcasmos.
Retirou-se apressadamente para casa, procurando seguir pelas vielas mais escusas. Limpando-se, encerrou-se no quarto, remoendo o despeito e a fúria. Depois, foi-se-lhe acalmando o espírito e resolveu abandonar deveras todas as vaidades, para só se consagrar à verdadeira grandeza, à verdadeira magnificência: a da alma, a de Deus. Haviam-se estabelecido, pouco tempo antes, em Palência alguns religiosos de S. Domingos, fundado um convento. Pedro González foi bater-lhe à portaria e pediu que o recebessem. O alvorotado clérigo converteu-se no mais concentrado e austero monge. Quando, exausto da pregação, tinha direito e imperiosa necessidade de repouso, descia ao confessionário, a concluir a sua obra e a colher-lhe os frutos.
E quando se hospedava numa casa, nunca se retirava sem haver confessado os seus moradores, convencendo-os primeiro a emendar a vida e entrar deveras no caminho da virtude. Andando o rei Fernando III a preparar uma expedição contra os mouros do sul de Espanha, convidou-o imediatamente a acompanhar os seus soldados. Tão universalmente erra conhecido o fruto do apostólico zelo do nosso santo e tão conhecida, dentro e fora do país, o ascendente que exercia sobre as almas, que os mouros, ao saberem que ele acompanhava as forças acometentes, foram fácil e completamente derrotados. Trata-se da conquista de Córdova, em 1236.
Regressando da feliz campanha, frei Pedro foi enviado para o convento de Compostela. Dali a sua atividade radiava para toda a diocese de Lugo. E, movido da pobreza espiritual dos povos da Galiza, deu-se a percorrer as aldeias dessa província de Espanha. A pregação chegou a Castelo, aldeia ribeirinha do rio Minho, perto de Ribadávia. A passagem do rio era muito perigosa neste ponto, especialmente nas grandes cheias em que era frequente as águas revoltas destruírem as embarcações, atirando-as contra os rochedos. Compadecido, frei Pedro empreendeu a construção duma ponte bem sólida, que resistisse às inundações.
Mas como realizar tamanha empresa que demandava poderosos capitais? Onde iria o humilde religioso buscar recursos para obra tão dispendiosa? Frei Pedro, agradecendo as esmolas, prosseguia na peregrinação. E quando alfim, cansado, com o hábito esfiado e empoeirado, voltou às margens do Minho, trazia consigo avultada quantiam, bastante para poder abalançar-se à construção da ponte. Começaram logo as obras sob a direção do humilde religioso. No entanto. a azáfama material não tirava a frei Pedro os cuidados e diligências pela vida espiritual. Doutrinava os numerosos operários da sua obra e tinha a consolação de ver bem compensados os seus labores.
Um dia faltou o alimento para os operários e Frei Pedro obteve do céu uma nova pesca milagrosa no rio Minho. Terminada esta grande empresa com pasmo de todos, não esmoreceu a atividade de Frei Pedro. retirando-se para o convento de Tuy, onde permaneceu muitos anos, dedicou-se com todo o seu zelo à conversão das almas. Em volta de si havia uma auréola de prodígios. Foi, dois anos, mestre de noviços da sua Ordem em Amarante.
Pregou em Tuy toda a Semana Santa, no meio de enorme concorrência de povo, que de longes terras vinha após a fama das suas maravilhas e do prestigio da sua palavra. Depois da festa da Páscoa sentiu um pequeno desfalecimento e viu-se obrigado a interromper os trabalhos do púlpito. Sentiu-se depois um pouco melhor, quis dirigir-se ao seu amado convento de Compostela, onde desejava exalar o último suspiro. Chegado, porém, a uma aldeia chamada santa Comba não conseguiu prosseguir. – A vontade Deus é-me agora clara e bem manifesta – disse frei Pedro ao religioso que o acompanhava. – É em Tuy que deverão terminar os meus dias, é a Tuy que devemos volver. E voltaram. Frei Pedro, ao terminar uma carreira tão cheia de boas obras, apresentou-se ao Proprietário da vinha, para receber o salário. Serenamente, piedosamente, cerrou os olhos, sorriu e morreu.
Ocupemo-nos fugitivamente, e para terminar a biografia do santo dominicano, da devoção que lhe é tributada com o padroeiro dos mareantes. A origem desta devoção dos que andam sobre as águas do mar é muito antiga. O nosso melodioso frei Luís de Sousa dá-lhe como origem um milagre operado pelo santo na vila galega de Baiona;estando frei Pedro a pregar ao ar livre, com enorme assistência de ouvintes, começaram a amontoar-se nuvens negras sobre o lugar e parecia prestes a rebentar grande tempestade; mas o pregador sossegou o auditório, ordenou às nuvens que não perturbassem o serviço de Deus e o bem das almas, e imediatamente os pesados vapores rolaram para a direita e esquerda, e sobre o povo não caiu uma só gota de chuva. Quase não há vila nem povoação da nossa beira-mar que não tivesse confraria do santo.
Em Fão, por exemplo, a origem da confraria é antiquíssima, talvez pouco posterior ao século da morte do servo de Deus. E a igreja paroquial de Massarelos, da c idade do Porto, pertencia à Confraria do Corpo Santo, S. Telmo. esta Confraria era antigamente constituída somente por marinheiros. O Infante D. Henrique foi seu presidente honorário. Esta devoção dos marinheiros portugueses e espanhóis foi por eles levada a todo o mundo.