sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

São Remígio de Reims


            Durante as invasões dos bárbaros na Europa, no século V, a Gália romana apresentava todos os sintomas de decadência, próprios ao fim de uma era histórica. O Império Romano agonizava, e a Igreja, por meio de grandes santos, lutava para converter os bárbaros invasores, atraindo-os para seu seio. São Remígio foi um de seus principais apóstolos.
             Nascido por volta do ano 436, filho de Santa Celina e de Emílio, conde de Laon, senhor de extraordinário mérito, era irmão de São Princípio, que foi bispo de Soissons.
            Os primeiros biógrafos e contemporâneos de São Remígio afirmam que seu nascimento foi predito por São Montano, solitário de vida ascética entregue à contemplação. Certa noite, pedindo com mais insistência a Deus Nosso Senhor que desse remédio à malícia e indiferença daqueles conturbados tempos, foi-lhe revelado que logo nasceria um varão, o qual, por sua santidade de vida, obteria a conversão dos gauleses e de seus invasores.

Arcebispo de Reims contra a vontade
Basílica de São Remígio, em Reims

             Desde pequeno Remígio sobressaiu-se por uma extraordinária aptidão para a virtude e para a ciência. Fez tão rápidos progressos na perfeição e nos estudos que, falecendo o arcebispo de Reims, clero e povo o aclamaram como seu sucessor, apesar de ter somente 22 anos de idade. De nenhum modo o jovem queria aceitar tamanha responsabilidade, alegando com razão que isso contrariava os cânones sagrados, que estipulavam a idade mínima de 30 anos para o episcopado. A discussão foi longe. E ainda se discutia quando um raio de luz, vindo do céu, iluminou-lhe o rosto, o que confirmou clero e povo na sua determinação, agora com o beneplácito divino. Remígio deu-se por vencido.
             Seus biógrafos ressaltam que era tanta sua virtude, maturidade de espírito e ciência, que ele principiou seu episcopado como o mais experimentado dos bispos. Diz um deles, Venâncio Fortunato, que Remígio era “largo em suas esmolas, profundamente humano, assíduo em velar, constante e devoto em rezar, perfeito na caridade, insigne na doutrina, sempre preparado para falar das coisas mais altas e divinas”. Atraía a todos pela bondade de seu coração, e mesmo as aves do céu vinham pousar em seus ombros e em suas mãos.

São Remígio e os bárbaros francos
São Remígio batiza Clóvis

            O grande acontecimento do episcopado de São Remígio foi a conversão de Clóvis, quinto rei dos bárbaros francos. Este povo, saindo das planícies da Holanda, dirigiu-se para o sul, apoderando-se das melhores partes dos Países Baixos, da Picardia e da Ilha-de-França. Clóvis tornara-se rei ainda adolescente, entre os 14 e 15 anos, já como grande guerreiro, valoroso e audaz.
            Tendo ele se estabelecido como rei na antiga Gália romana, que conquistara, São Remígio enviou-lhe uma carta na qual dizia: “Um grande rumor nos chegou: diz-se que tu acabas de tomar as rédeas do governo de nossa nação. Não surpreende que sejas tu o que foram teus pais. Mas vela para que nunca te abandone o juízo de Deus, a fim de que, por teus méritos, logres conservar esse posto que conquistaste por tua indústria e nobreza, porque, como diz o vulgo, os atos do homem se provam por seu fim. Rodeia-te de conselheiros que saibam acrescentar tua honra. Sê casto e honesto; honra os sacerdotes e atende a seus conselhos, pois se vives em harmonia com eles, darás o bem-estar ao país. Consola os aflitos, protege as viúvas, alimenta os órfãos, faze com que todo mundo te ame e te tema. De teus lábios saia a voz da justiça, deixa aberta a todo mundo a porta de tua presença. Joga com os jovens, posto que és jovem, mas aconselha-te com os anciãos. E se queres reinar, mostra-te digno disso”.
              Embora sendo ainda pagão, Clóvis não perseguia os cristãos e tinha respeito pelos bispos e sacerdotes das cidades que submetia a seu domínio.
              Cada santo é chamado a refletir de modo particular alguma das perfeições de Deus. Assim, uns se notabilizam pela fortaleza, outros pela lógica, outros pela extremada pureza. São Remígio espelhou de modo admirável a bondade de Deus. Despido do menor vestígio de egoísmo, alegrava-se verdadeiramente com o bem do próximo. Seu rosto espelhava a bondade do coração, e ele atraía a todos por sua afabilidade e bom trato. Isto foi uma das coisas que mais impressionaram o bárbaro Clóvis logo que o conheceu, fazendo-o admirar tanto São Remígio.
              O conhecido episódio de Soissons mostra, embora com métodos bárbaros, o quanto Clóvis considerava o santo arcebispo. Seus soldados pagãos haviam pilhado uma igreja dessa cidade, levando ornamentos e vasos sagrados. São Remígio lamentou sobretudo um cálice de prata, finamente cinzelado, e pediu a Clóvis que, se possível, o desse de volta. Na hora da repartição dos despojos, o rei pediu como um favor que não se lançasse a sorte sobre esse cálice, mas que o dessem a ele. Todos concordaram, menos um soldado mais bárbaro, que com um golpe de acha o danificou, dizendo insolentemente ao rei que ele não o teria mais que os outros. Clóvis dissimulou seu desprazer como pôde. Dias mais tarde, fazendo a revista de sua tropa, chegou-se diante do insolente e, sob pretexto de que suas armas não estavam em ordem, as lançou por terra. Deu-lhe então potente golpe de acha na cabeça, matando-o, ao mesmo tempo em que dizia: “Assim fizeste com o cálice de Soissons”.
               Logo que esse grande conquistador subjugou a Turíngia, no décimo ano de seu reino, desposou Clotilde, filha de Chilperico, irmão do rei da Borgonha. Esta era católica exemplar, e foi posteriormente elevada à honra dos altares. Instava muito para que seu marido se convertesse. Prometendo sempre que o faria, Clovis no entanto adiava sua conversão para um futuro incerto.

Conversão de Clóvis: glória para a Igreja
São Remígio batiza Clóvis

                 Mas chegara a hora da Providência. Corria o ano 496. Clóvis encontrava-se outra vez à frente de seu exército enfrentando outros bárbaros, os alamanos, nas proximidades de Tolbiac. Os francos, tão acostumados à vitória, foram sendo acossados pelos alamanos com tal vigor, que começaram a recuar. A batalha parecia perdida. Prevendo o desastre, um conselheiro do rei, que era cristão, sugeriu-lhe a que invocasse o verdadeiro Deus naquele transe. Clóvis prometeu então “ao Deus de Clotilde” que se converteria à Religião católica, caso obtivesse a vitória. No mesmo momento os francos voltaram-se contra os alamanos com tal ímpeto, que romperam todas suas linhas e chegaram até seu rei, que mataram. A batalha estava ganha.
                 Clóvis, que era leal, não tardou em cumprir sua promessa. Logo que retornou, mandou chamar São Vedasto, bispo de Toul, para instruí-lo na fé. Santa Clotilde apressou-se também em chamar São Remígio para completar a obra e administrar-lhe o batismo. “Ele acabou de abrir-lhe os olhos e de lhe descobrir a excelência e santidade de nossos mistérios. O ardor da fé e da religião iluminou-se tão fortemente nesse coração marcial, que ele se fez apóstolo de seus vassalos antes de ser cristão; reuniu os grandes de sua corte, mostrou-lhes a loucura e a extravagância do culto aos ídolos, e conclamou-os a não mais adorar senão um só Deus, criador do Céu e da Terra, na trindade de suas pessoas. Fez o mesmo com seu exército, e sua pregação foi tão poderosa que a maior parte dos francos quis imitar seu exemplo”.
                 Segundo as crônicas, quando São Remígio narrava para aqueles bárbaros os sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua Paixão, Clóvis batia com a lança no chão, exclamando cheio de indignação: “Ah! Por que não estava eu lá com os meus francos!”.

“Pai, já é este o reino de Deus?”

                  São Remígio quis que a cerimônia do batismo real fosse cercada de toda pompa. Segundo a tradição, realizou-se na noite de Natal. O caminho do palácio até a igreja de Nossa Senhora estava engalanado com tapeçarias e arcos de flores, e o pórtico da igreja iluminado por muitas velas. Nuvens de incenso perfumavam o ar. Quando Clóvis, acompanhado dos seus, entrou no templo, perguntou emocionado ao santo: “Pai, já é este o reino de Deus, que vós me prometestes?”. Respondeu Remígio: “Não, mas é a entrada do caminho que a ele conduz”.
                  Na pia batismal, São Remígio disse aquelas palavras que se tornaram célebres: “Curva a cabeça, altivo sicambro; queima o que adoraste e adora o que queimaste”.
Relíquias de São Remígio na basílica em Reims

                   O Cardeal Barônio nota que, além do batismo, São Remígio conferiu também a Clóvis a unção real, o que depois se tornou uma tradição entre os reis da França. A igreja estava tão repleta, que o clérigo que devia levar o óleo do crisma ficou retido pela multidão. São Remígio elevou então os olhos a Deus, e nesse momento viu-se uma alvíssima pomba trazendo no bico uma ampola com o óleo, que depositou nas mãos do prelado. Essa é a origem da “Santa Ampola” que serviu, até a Revolução Francesa, para sagrar os bispos gauleses.
                  Duas irmãs de Clóvis foram também batizadas com ele, além de um número incalculável de senhores e uma infinidade de soldados, mulheres e crianças que quiseram seguir o exemplo de seu rei.
                São Remígio sobreviveu a Clóvis, falecendo nonagenário. Deus o fez participar de sua Cruz, enviando-lhe muitas moléstias, e mesmo a cegueira. Osculando a mão divina que assim o atingia, o santo arcebispo faleceu no dia 13 de janeiro de 533, aos 96 anos de idade.