terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Das Cartas de São Leão Magno, papa (Ep. 31,2-3: PL 54, 791-793) (Séc. V)

 
O mistério de nossa reconciliação
 
         De nada serve afirmar que nosso Senhor, filho da Virgem Maria, é verdadeiro e perfeito homem, se não se acredita que ele também pertence a essa descendência proclamada no Evangelho.
         Escreve São Mateus: Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão (Mt 1,1). E, a seguir, apresenta a série de gerações desde os primórdios da humanidade até José, com quem estava desposada a Mãe do Senhor.
        São Lucas, porém, percorrendo em sentido inverso a ordem dos descendentes, chega ao começo do gênero humano, para mostrar que o primeiro e o último Adão têm a mesma natureza.
       Com efeito, seria possível à onipotência do Filho de Deus, para ensinar e justificar os homens, manifestar-se do mesmo modo que aparecera aos patriarcas e profetas, como, por exemplo, quando travou uma luta ou manteve uma conversa, ou quando aceitou os serviços da hospitalidade a ponto de tomar o alimento que lhe apresentaram.
       Mas essas aparições eram imagens, sinais misteriosos, que anunciavam a realidade humana do Cristo, assumida da descendência daqueles antepassados.
      Nenhuma daquelas figuras, entretanto, poderia realizar o mistério da nossa reconciliação, preparado desde a eternidade, porque o Espírito Santo ainda não tinha descido sobre a Virgem Maria, nem o poder do Altíssimo a tinha envolvido com a sua sombra; a Sabedoria eterna não edificara ainda a sua casa no seio puríssimo de Maria para que o Verbo se fizesse homem; o Criador dos tempos ainda não tinha nascido no tempo, unindo a natureza divina e a natureza humana numa só pessoa, de modo que aquele por quem tudo foi criado fosse contado entre as suas criaturas.
      Se o homem novo, revestido de uma carne semelhante à do pecado (cf. Rm 8,3), não tivesse assumido a nossa condição, envelhecida pelo pecado; se ele, consubstancial ao Pai, não se tivesse dignado ser também consubstancial à Mãe e unir a si nossa natureza, com exceção do pecado, a humanidade teria permanecido cativa sob o jugo do demônio; e não poderíamos nos beneficiar do triunfo do Vencedor, se esta vitória fosse obtida numa natureza diferente da nossa.
     Dessa admirável união, brilhou para nós o sacramento da regeneração, para que renascêssemos espiritualmente pelo mesmo Espírito por quem o Cristo foi concebido e nasceu.
     Por isso diz o Evangelista, referindo-se aos que crêem: Estes não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus mesmo (Jo 1,13).