segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Confissões de Santo Agostinho, Capítulo XXXI: A intemperança

          O dia me traz novo pecado, e oxalá fosse o único! Comendo e bebendo, restauramos as diuturnas perdas de nosso corpo, até o dia em que destruirás o alimento e o estômago, matando minha necessidade com uma maravilhosa saciedade, e revestindo este corpo corruptível de eterna incorruptibilidade.
          Mas por ora esta necessidade me é grata, e luto contra essa delícia, para que não me domine; é uma guerra cotidiana que sustento com jejum, reduzindo meu corpo à escravidão. Mas minhas dores são eliminadas pelo prazer, porque a fome e a sede são sofrimentos: queimam e matam como a febre se os alimentos não lhe põem remédio. Mas como esse remédio está sempre à nossa disposição, graças à liberdade de teus dons que põe à disposição de nossa fraqueza a terra, a água e o céu, nossas misérias recebem por nós o nome de delícias. 
          Tu me ensinaste a considerar os alimentos como remédios. Mas quando passo dessa penosa necessidade à paz da saciedade, nessa passagem a concupiscência arma para mim sua cilada. Esta passagem é prazerosa, e não há outra para se chegar onde a necessidade nos obriga. A razão do beber e do comer é a conservação da saúde; mas um prazer insidioso acompanha como lacaio essas funções, e sempre tenta tomar a dianteira, de modo que faço pelo prazer o que digo fazer por minha saúde. 
         Ora, a medida do prazer não é a mesma da saúde; o que é bastante para a saúde não o é para o prazer, e muitas vezes é difícil discernir se é o cuidado com o corpo que pede reforço de alimento, ou se é a gula que nos engana e quer ser servida. Essa incerteza alegra nossa pobre alma, feliz por ter encontrado um álibi e uma desculpa na impossibilidade de determinar o que basta para o cuidado com a saúde, e sob o pretexto da sua conservação esconde a busca do prazer. Esforço-me para resistir a essas tentações diárias, e invoco tua mão para me socorrer. A ti confesso minha incerteza, porque sobre este ponto meu juízo ainda não é firme. 
         Ouço a voz de meu Deus que ordena: “Não se façam pesados vossos corações com a intemperança e embriaguez”. A embriaguez está longe de mim; que tua misericórdia não a deixe se aproximar. Mas a intemperança, ao contrário, chega às vezes a arrastar teu servo. Tua misericórdia há de afastá-la de mim, porque ninguém pode ser temperante senão por tua graça. 
        Muitas coisas nos concedes quando te invocamos, e todo o bem que recebemos, mesmo antes de o pedir, é a ti que sempre o devemos. E o ato mesmo de reconhecermos que esses dons são teus, é ainda graça tua. Nunca estive embriagado, mas conheci muitos, dados a esse vicio, que se tornaram sóbrios por tua graça. Assim, é graças a ti que alguns não são o que nunca foram; e também é graças a ti que outros não são mais o que foram; e é graças a ti, enfim, que estes e aqueles sabem a quem devem essa graça. 
        Ouvi ainda de ti outra palavra: “Não corras atrás de tuas concupiscências, e reprime teus apetites” – Tua graça ainda me fez ouvir outra palavra, de que tanto gostei: “Se comemos, não teremos abundância; e se não comemos, não sofreremos privação”. – Ou seja: nem isto me fará rico, nem aquilo pobre. – E ouvi ainda esta outra: “Aprendi a me contentar com o que tenho: sei viver na abundância e suportar a penúria. Tudo posso naquele que me fortalece”. – Eis como fala o bom soldado da milícia celeste: nada parecido ao pó que somos. Mas, Senhor, lembra-se que somos pó, e que de pó fizeste o homem; que este havia se perdido, e que foi reencontrado.
       Por si mesmo, formado do mesmo pó que nós, nada podia aquele cujas palavras inspiradas tanto amei: “Tudo posso naquele que me fortalece” – Concede-me forças, para que eu possa. Dá-me o que mandas, e manda o que quiseres. Paulo confessa que tudo recebeu de ti, e, quando se gloria, é no Senhor que ele se gloria. 
       Ouvi também outro que te pedia esta graça: “Afasta de mim a intemperança”. – De onde se conclui claramente, ó Deus santo, que dás a força de cumprir o que mandas. 
  “Tu me ensinaste, Pai bondoso, que tudo é puro para os puros, mas que é mau para o homem comer com escândalo, que tudo o que fizeste é bom, e que nada deve ser rejeitado do que se recebe com ação de graças; que os alimentos não nos recomendam a Deus, que ninguém nos deve julgar pela comida ou pela bebida; que o que come não deve julgar o que não come”. – Por essas lições, graças e louvores te dou, meu Deus, meu Mestre, que bateste à porta de meus ouvidos e iluminaste meu coração. Livra-me de toda tentação. Não receio a impureza dos alimentos, mas a impureza do prazer.   Sei que Noé teve permissão de comer toda espécie de carne que pudesse servir de alimento, e que Elias comeu carne para reparar as forças; sei que João Batista, asceta admirável, não se manchou com os animais – os gafanhotos – de que se alimentava. Todavia eu sei que Esaú deixou-se enganar pelo desejo de um prato de lentilhas; que Davi se repreendeu a si mesmo por ter desejado água; que nosso Rei foi submetido à tentação, não de carne, mas de pão. Por isso o povo foi justamente repreendido no deserto, não por ter desejado comer carne, mas porque o desejo o fez murmurar contra o Senhor. 
         Exposto a estas limitações, luto diuturnamente contra a concupiscência do comer e do beber, pois não é coisa que possa cortar de uma vez por todas, apenas com o propósito de nunca mais recair, como fiz com a luxúria. É uma rédea imposta a meu paladar, ora para afrouxá-la, ora para retesá-la. E quem é, Senhor, que não se deixa arrastar às vezes além dos limites do necessário? Se existe alguém assim, é de fato grande, e deve engrandecer teu nome. eu porém não sou desse número, porque sou pecador. Contudo, também, eu engrandeço teu nome, e Aquele que venceu o mundo intercede junto a ti por meus pecados. Conta-me entre os membros enfermos de seu corpo, porque teus olhos viram minhas imperfeições e porque todos serão inscritos em teu livro.