quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Do Livro sobre a morte de seu irmão Sátiro, de Santo Ambrósio, bispo (Lib. 2,40.41.46.47.132.133:CSEL 73,270-274.323-324) (Séc.IV)

Santo Ambrósio: do Ofício Divino de Finados

Morramos com Cristo, para vivermos com ele!


         Percebemos que a morte é lucro, e a vida, castigo. Por isso Paulo diz: Para mim, viver é Cristo, e morrer é lucro (Fl 1,21). Como unir-se a Cristo, espírito da vida, senão pela morte do corpo? Morramos então com ele, para com ele vivermos. Morramos diariamente no desejo e em ato, para que, por esta segregação, nossa alma aprenda a se subtrair das concupiscências corporais. Que ela, como se já estivesse nas alturas, onde não a alcançam os desejos terrenos, aceite a imagem da morte para não incorrer no castigo da morte. Pois a lei da carne luta contra a lei do espírito e apóia-se na lei do erro. Mas qual o remédio? Quem me libertará deste corpo de morte? (Rm 7,24) A graça de Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor (cf. Rm 7,25s).
        Temos o médico, usemos o remédio. Nosso remédio é a graça de Cristo, e corpo de morte é o nosso corpo. Portanto afastemo-nos do corpo e não se afaste de nós o Cristo! Embora ainda no corpo, não lhe obedeçamos, não abandonemos as leis naturais, mas prefiramos os dons da graça.
        E que mais? Pela morte de um só, o mundo foi remido. Cristo, se quisesse, poderia não ter morrido. Não julgou, porém, dever fugir da morte como coisa inútil nem que nos salvaria melhor, evitando a morte. Com efeito, sua morte é a vida de todos. Somos marcados com sua morte, ao orar anunciamos sua morte, ao oferecer o sacrifício pregamos sua morte. Sua morte é vitória, é sacramento, é a solenidade anual do mundo.
       Não diremos ainda mais sobre a sua morte, se provarmos pelo exemplo divino que dela resultou a imortalidade, e que a morte se redimiu a si mesma? Não se deve lastimar a morte, que é causa da salvação do povo. Não se deve fugir da morte, que o Filho de Deus não rejeitou, e da qual não fugiu.
      Na verdade, a morte não era da natureza, mas converteu-se em natureza. No princípio, Deus não fez a morte, mas deu-a como remédio. Pela prevaricação, condenada ao trabalho de cada dia e ao gemido intolerável, a vida dos homens começou a ser miserável. Era preciso dar fim aos males, para que a morte restituísse o que a vida perdera. Pois a imortalidade seria mais penosa que benéfica, se não fosse promovida pela graça.
       Por isso, tem o espírito de afastar-se logo da vida tortuosa e das nódoas do corpo terreno, e lançar-se para a celeste assembléia, embora pertença só aos santos lá chegar, e cantar a Deus o louvor, descrito no livro profético, que os citaristas cantam: Grandes e maravilhosas tuas obras, Senhor Deus onipotente; justos e verdadeiros teus caminhos, ó Rei das nações! Quem não temeria e não glorificaria teu nome? Porque só tu és santo; todos os povos irão e se prostrarão diante de ti (Ap 15,3-4). Contemplar também, ó Jesus, tuas núpcias, nas quais a esposa, ao canto jubiloso de todos, é conduzida da terra ao céu – a ti virá toda carne (Sl 64,3) – já não mais manchada pelo mundo, mas unida ao espírito.
        Era isto que o santo Davi desejava, acima de tudo, contemplar e admirar, quando dizia: Uma só coisa pedi ao Senhor, a ela busco: habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida e ver as delícias do Senhor (Sl 26,4).