A Frígia foi uma das províncias orientais romanas, evangelizadas por S. Paulo, onde o cristianismo se fixou mais rapidamente. Desde o século II, havia numerosos bispados, e no século III dominavam tão eficazmente que viviam em tranquilidade perfeita. A perseguição de Diocleciano revestiu o aspecto duma invasão bárbara: o grande historiador Eusébio conta que uma cidadezinha da Frígia foi inteiramente queimada com os habitantes, todos cristãos.
Foi em tal ambiente de “cristandade” que viveu Abércio. Habitava e pastoreava Hiéropolis, cidade situada a Ocidente de Sínada. A celebridade de Abércio vem-lhe , em particular, da inscrição que ele mandou gravar em grego no seu túmulo. É chamada a rainha das inscrições cristãs. Era conhecida pela lenda em que é citada, mas, como se julgava que sofrera retoques ineptos, pouca importância se lhe dava.
Em 1883, porém, o arqueólogo Ramsay descobriu, na parede duma casa, dois importantes fragmentos que enviou para Roma, para os museus do Vaticano. A inscrição pode ser reconstruída quase inteiramente com exatidão. Ei-la aqui traduzida: Cidadão duma cidade distinta, fiz este (monumento) / estando ainda em vida, para ter nele um dia lugar para o meu corpo. / Chamo-me Abércio; sou discípulo dum santo pastor / que leva os seus rebanhos de ovelhas por montes e vales, / que tem olhos muito grandes que tudo veem. / Foi ele que me ensinou as Escrituras fiéis. / Foi ele que me enviou a Roma contemplar a soberana / e ver a rainha de vestidos de oiro, com sapatos de oiro. / Vi lá um povo que traz um selo brilhante. / Vi também a planície da Síria e todas as cidades, / Nísibe além do Eufrates. Em toda a parte encontrei irmãos. / Tinha Paulo como… A fé levava-me a toda a parte./ Em toda a parte me serviu como alimento um peixe de nascente, / muito grande, puro, pescado por uma virgem pura. / Ela dava-o cem cessar a comer aos amigos. / Ela tem um vinho delicioso, dá-o com pão. / Mandei escrever estas coisas, eu Abércio, na idade dos 72 anos. / O irmão que entende isto peça por Abércio. / Não se há-de pôr nenhum túmulo por cima do meu. / sob pena de multa de duas mil moedas de oiro para o fisco romano, / e de mil para a minha querida pátria, Petrópolis. Embora Abércio não faça valer nenhum título no seu epitáfio, não era sem dúvida simples habitante de Hierópolis: era bispo da cidade. Morreu em data desconhecida, nos primeiros anos do século III.
No seu epitáfio começa por declarar que mandou ele próprio construir o seu túmulo. Dá-se por discípulo dum “santo pastor” que é evidentemente Jesus Cristo. Conta, em seguida, que foi a Roma para ver “a rainha de vestidos de oiro”; É a Igreja Romana, digna capital do mundo e rainha de todas as igrejas. Viu lá “um povo que traz um selo brilhante!”, o povo dos fiéis marcado com o selo brilhante do Baptismo. Depois lançou-se a uma grande viagem que o levou, através da Síria, até Nísibe, além-Eufrates, e em toda a parte encontrou irmãos cristãos.
Neste ponto, não foi possível reconstruir o texto; lê-se o nome de Paulo e trata-se com certeza do apóstolo, Porque é que Abércio lhe fez alusão? Talvez queira indicar que Paulo foi o seu mestre e guia. Foi-o, sem dúvida no sentido espiritual, talvez mesmo também no sentido literal, caso Abércio tenha, na sua viagem, seguido o trajeto Paulino da 2ª viagem apostólica. Abércio continua dizendo que a fé, que era a sua guia, lhe “serviu como alimento um peixe de nascente, muito grande, puro, pescado por uma virgem pura”. Alusão transparente é Eucaristia e a Cristo nascido da Virgem Maria, Insiste ainda na Eucaristia usando o simbolismo mais claro ainda do pão e do vinho. Termina dizendo que tinha 72 anos quando mandou edificar este monumento; e convida cada cristão - “o irmão que entende isto” - a pedir por ele. O final está perfeitamente na maneira antiga: assim como os seus contemporâneos, pagãos ou cristãos, Abércio desejava repousar em paz no seu túmulo. Para o garantir, recorre às autoridades: ameaça com grandes multas aqueles que se atrevam a tocar no túmulo, apelando não só para os magistrados municipais, mas recorrendo diretamente ao fisco romano.
A inscrição de Abércio é preciosíssimo testemunho da vida cristã no fim do século II ou no principio do III. Este bispo da Ásia Menor, que apela para as leis do Império para ter a certeza de gozar a paz do túmulo, afirma com naturalidade a divindade de Cristo, exalta a Igreja Romana, e encarece a união dos fiéis realizada pelo Batismo e pela Eucaristia.